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Fusão nuclear: entenda por que e como ela pode salvar o planeta

Galileu - 06 de março de 2020 2294 Visualizações
Fusão nuclear: entenda por que e como ela pode salvar o planeta
Em um segundo, o Sol irradia para o espaço 1 milhão de vezes mais energia do que o que todos os 7,5 bilhões de seres humanos do planeta consomem a cada ano. E se houvesse um jeito de replicar esse processo natural tão eficiente aqui na Terra? Esse questionamento há décadas motiva os cientistas a domar a fusão nuclear — a poderosa reação que pulsa no coração das estrelas. Engarrafar sóis em miniatura e extrair a generosa energia que produzem garantiria um futuro brilhante de abundância para a humanidade.

Muitos especialistas estão convictos de que a fusão é a fonte prometida para salvar a espécie humana de uma catástrofe climática. Mas, definitivamente, o tempo não está a nosso favor. Somos terrivelmente dependentes da queima de petróleo, carvão mineral e gás natural para gerar energia. Estima-se que essas três fontes combinadas somem 80% da produção mundial. Combustíveis fósseis são os maiores emissores de gases do efeito estufa e, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), dois terços das emissões vêm do setor energético. Dominar a técnica da fusão nuclear seria a solução para esses problemas.
Faz todo sentido. Tal fonte de energia é abundante: fundir átomos controladamente libera 4 milhões de vezes mais energia que a queima de petróleo e quatro vezes mais que a fissão nuclear. Ela também é sustentável: seus reagentes estão disponíveis no mundo todo e são praticamente inesgotáveis. Para iniciar a fusão, são necessários apenas dois isótopos do hidrogênio — deutério e trítio. O deutério é praticamente infinito, uma vez que está presente na água do mar. Já o trítio precisa ser fabricado.

Mas a produção desse isótopo está atrelada ao próprio processo da fusão: é só garantir que os nêutrons emitidos reajam com o lítio. “Acho que uma bateria de lítio de um laptop e, talvez, uma garrafa de água forneceriam eletricidade para sua vida toda”, afirma Eva Belonohy, especialista de plasma no experimento de fusão JET, do Reino Unido. Reservas de lítio também são muito abundantes, disponíveis em terra firme e nos oceanos.
A fusão nuclear não emite dióxido de carbono (CO2), apenas hélio, e o gás nobre em estado inerte não é tóxico. Ao contrário do processo de fissão, não há produção de lixo nuclear nem riscos decorrentes da fabricação de armas atômicas. Em outras palavras, a fusão é segura: por ser um processo tão difícil de manter, caso algo dê errado, basta apertar um botão e o plasma resfria em segundos. Não existe risco de Chernobyls ou Fukushimas. Um grande negócio, não?

O processo
Só há um pequeno problema: a fusão nuclear (ainda) é inalcançável. Há muitas questões que precisam ser resolvidas em laboratório antes da tão esperada aplicação em usinas. Até agora, todas as máquinas fabricadas ficaram restritas a experimentos, e nenhum reator de verdade foi desenvolvido. “Eu tento usar a analogia da lenha molhada”, explica o físico Vinícius Duarte, sobre a dificuldade de disparar as reações.

É preciso começar com um fogo alto para fazer a madeira secar e garantir que a lenha possa ser incinerada. Depois, o fogo deslancha. “Parece com a fusão nuclear. É difícil engatilhar, mas após começar, vai embora”, compara Duarte, que é pesquisador do Laboratório de Física de Plasma da Universidade de Princeton (PPPL), em Nova Jersey, uma das instituições de pesquisa mais tradicionais dessa área no mundo.
A questão é que acender essa fogueira não é um trabalho simples — o plasma de deutério e trítio deve ser dez vezes mais quente que o núcleo do Sol. Em nossa estrela, a imensa gravidade facilita o processo, permitindo que isso ocorra a “apenas” 10 milhões de graus Celsius. Nas condições da Terra, tal temperatura precisa ser de 100 milhões de graus. No mínimo. Plasma é o quarto estado da matéria, com propriedades únicas, diferente de líquidos, sólidos e gases.


Como funciona o processo de fusão nuclear (Foto: Design e ilustração: Mayra Martins)


Mais de 99% do Universo, como as estrelas e a matéria interestelar, é feito de plasma. Para contê-lo no dispositivo continuamente aquecido sem danificar as paredes de um reator, os cientistas usam grandes ímãs para criar uma “prisão” magnética. Encontrar o material ideal para a parede do equipamento, desenvolver a tecnologia para cultivar o trítio e projetar o mecanismo que produzirá vapor para transformar a energia gerada em eletricidade e colocá-la na rede elétrica são outros desafios. Há décadas, físicos tentam montar esse quebra-cabeça.

O passado
Na década de 1920, o astrofísico Arthur Eddington sugeriu que as estrelas fundiam hidrogênio em hélio. Físicos nucleares refinaram o conceito, demonstrado pela primeira vez em 1934 por Ernest Rutherford. Às vésperas da Segunda Guerra as bases teóricas já estavam bem definidas, e em 1946 o primeiro “reator de fusão” foi patenteado no Reino Unido. Mas a pesquisa só começou mesmo nos anos 50, graças a uma pegadinha.
Em 1951, o presidente argentino Juan Perón anunciou que seu país havia dominado a fusão termonuclear controlada. Foi um frenesi. Era difícil acreditar que a Argentina, país sem tradição científica, pudesse ter desbancado potências como os EUA e a União Soviética. Nossa vizinha atraiu bons cientistas vindos da Alemanha nazista, um deles especialista em fusão: Ronald Richter, que persuadiu Perón a investir milhões de pesos em um projeto secreto.

O laboratório foi erguido na ilha Huemul, aos pés dos Andes. Richter alegou ter gerado energia com a fusão, mas os resultados estavam errados. Ele foi preso por ter feito Perón passar vergonha. Antes disso, a notícia do triunfo da Argentina inquietou Lyman Spitzer, astrofísico que estava ajudando na construção da temida bomba de hidrogênio.
Spitzer recebeu um telefonema do pai contando o caso argentino e, nos dias seguintes, enquanto esquiava, pensou muito na questão. Apresentou um projeto para construir uma “garrafa magnética” onde o fogo do Sol pudesse ser reproduzido.
Surgia o stellarator: primeiro reator de fusão experimental. Além de EUA e URSS, Reino Unido, França e Japão investiam em fusão. “Eram pesquisas sigilosas, todos sabiam que os outros faziam, mas ninguém comunicava resultados, pois se pensava que seria fácil atingir a fusão nuclear”, explica o engenheiro e físico de plasmas Ricardo Galvão, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e grande referência brasileira em fusão.

Logo ficou claro que seria preciso unir esforços para domesticar a energia das estrelas. Foi então que a ONU organizou em Genebra, em 1958, a primeira conferência sobre o tema, e tudo passou a ser compartilhado para constante aprimoramento. Tem sido assim até hoje.

O caminho
De novo em Genebra, em 1985, o premiê soviético Mikhail Gorbatchov propôs a Ronald Reagan, presidente dos EUA, que a fusão fosse desenvolvida em colaboração para fins pacíficos. Foi a semente do ITER, o Reator Termonuclear Experimental Internacional, equipamento com custo estimado em US$ 22 bilhões, fruto de um consórcio ainda maior que o da Estação Espacial Internacional ou o do Grande Colisor de Hádrons. Em latim, iter significa “O Caminho”. Sua missão é ser o primeiro equipamento a produzir mais energia do que a que é inserida — 500 MW para cada 50 MW gastos.
Ao todo, 35 nações participam do projeto, que está em construção no sul da França. “Boa parte do design está terminado, os principais componentes estão sendo construídos e mandados ao local para montagem”, afirma Greg De Temmerman, cientista coordenador de interações do plasma no experimento. As obras começaram em 2007. O primeiro plasma está previsto para 2025 e a fusão de deutério e trítio, só para 2035. Atrasos recentes e aumento do custo do ITER quase fizeram os EUA se retirarem, mas De Temmerman diz que, desde 2015, a organização voltou aos trilhos. “Toda a propriedade intelectual será dividida igualmente entre todos os parceiros, é algo único”, afirma o pesquisador.

Um atalho?
Nos últimos dez anos, houve um boom de investimento privado em fusão nuclear. Fundos de capital de risco, investidores do Vale do Silício e bilionários como Jeff Bezos e Bill Gates ficaram interessados em aplicar muita grana na área. Startups surgiram com a promessa de criar reatores compactos e baratos para produzir energia por uma fração do custo do ITER. E o principal: de modo muito mais rápido.
Uma delas é a empresa canadense General Fusion. Christofer Mowry, o CEO da companhia, compara o momento da fusão ao da exploração espacial. Suas grandes referências são a SpaceX e seu fundador, Elon Musk. “Ele não inventou a ciência dos foguetes; o que fez foi juntar anos de pesquisa da Nasa com o espírito empreendedor e as tecnologias do século 21 para fazer mais rápido foguetes melhores e mais baratos”, diz. “É o que estamos fazendo.”
Mowry estima que o início da operação de um protótipo de usina se dê em quatro anos e que os primeiros resultados concretos venham no final da próxima década. Outras empresas também trabalham com cronogramas bem mais agressivos que o do ITER — vão falir se não entregarem o que prometem. Impressão 3D e sistemas digitais de controle de dados fazem a diferença na “modernização” da fusão.

Mas os conceitos que a iniciativa privada explora como atalho são mais incertos e arriscados que o caminho adotado pelo ITER. Pode ser que, no fim das contas, descubra-se que a energia de fusão seja cara demais para ser explorada comercialmente. Pelo bem do clima e da espécie humana, devemos torcer para que uma das duas vias dê certo. Assim será possível esquecer os combustíveis fósseis debaixo da Terra — e deixar que centenas de sóis engarrafados brilhem sobre ela.

A estrutura das unidades básicas da matéria

(Ilustração e design: Mayra Martins)

Existem dois meios de extrair energia dos núcleos atômicos — é possível fundi-los ou quebrá-los. Fissão envolve a quebra de um núcleo pesado em dois núcleos mais leves; já a fusão consiste na combinação de dois núcleos leves para formar um pesado.
Isso é possível graças à estrutura dos átomos, responsáveis por constituir toda a matéria, orgânica e inorgânica. De modo geral, o núcleo atômico é composto de prótons e nêutrons, já os elétrons “orbitam” ao redor do núcleo e são atraídos pelos prótons.

E como funciona a fissão nuclear?
Reatores de fissão operam há 80 anos. Uma partícula acerta o núcleo do átomo.  A colisão quebra o núcleo e libera uma grande quantidade de energia.



REPORTAGEM A. J. OLIVEIRA | EDIÇÃO THIAGO TANJI
(Ilustração e design: Mayra Martins)