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A ciência brasileira está lá fora

Galileu - 30 de agosto de 2016 1056 Visualizações
Neste momento, diferentes batalhas são travadas nas fronteiras da ciência. Pesquisadores brilhantes tentam decodificar os mecanismos do câncer, em busca de tratamentos eficientes e medicamentos mais precisos. Em outro campo do conhecimento, cientistas procuram respostas para a crise global de alimentos que se anuncia em meio às transformações climáticas. Há também profissionais que se dedicam a desenvolver inovações tecnológicas e aplicá-las com o objetivo de promover melhorias para o cotidiano. Entrincheirados nessa linha de frente da ciência global estão brasileiros formados em centros de excelência dos Estados Unidos e da Europa. Eles aproveitaram a oportunidade de ingressar nessas instituições por meio de sistemas de bolsa e intercâmbios, tanto públicos como privados, para expandir seu conhecimento e transformar sua visão de mundo em ambientes com menos burocracia e melhor infraestrutura para realização de pesquisas. Agora, atuam em grupos de estudos de universidades, estão em multinacionais e desenvolvem projetos com ONGs.
De origens diversas e trabalhando em diferentes especialidades da ciência, esses brasileiros se conectam por meio de redes de contato no exterior, facilitadas por outros conterrâneos que se especializaram nessa tarefa. É o caso de Cristina Caldas, que criou em 2010 um grupo para integrar cientistas brasileiros a partir de reuniões informais feitas em sua casa, na cidade norte-americana de Boston. A rede, batizada de SciBr, cresceu e hoje conecta cerca de 3 mil pessoas em diferentes regiões dos Estados Unidos.“Nas universidades daqui, há uma dinâmica interna bem mais simples”, diz Cristina. “O aluno faz apenas a pesquisa, em vez do trabalho burocrático comum no Brasil.”
A maioria desses profissionais, no entanto, também deseja retornar ao Brasil para compartilhar suas experiências e contribuir para o desenvolvimento de pesquisas científicas de qualidade no país. É o que ocorre com Ricardo Durães, graduado pela Faculdade de Tecnologia e Ciências de Salvador, e que, em 2015, ingressou no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT. Desenvolvendo um estudo sobre a evolução do vírus responsável pela gripe, ele se prepara para voltar ao Brasil, onde busca uma bolsa do governo de Pernambuco para pesquisar o zika vírus. “Os investimentos nessas pesquisas estão longe de ser suficientes”, afirma. Conheça, a seguir, mais algumas dessas histórias.
 
Tamara Bucalo, 27 anos, engenharia aeroespacial
O desafio de Tamara está nas alturas, mas o trabalho dela acontece em solo e pode ter um grande impacto na aviação. Formada em Engenharia de Energia pela Universidade Federal do ABC (UFABC), ela integra uma equipe da universidade norte-americana de Virginia Tech que ajuda a NASA a desenvolver um novo tipo de aeronave, mais econômica no consumo de combustível.
Tamara e sua equipe estudam o desempenho das turbinas desse modelo de avião, cujo projeto prevê a instalação do equipamento no topo da fuselagem, e não nas asas, como se costuma ver. A razão para isso está no aproveitamento do ar mais energizado que vem da corrente a partir do bico da aeronave. A brasileira deseja entender precisamente como aturbina reage às possíveis distorções do ar com essa carga extra de energia e, para isso, ela e sua equipe criaram uma tela, produzida com tecnologia de impressão 3-D, que pode ser acoplada a turbinas de laboratório, sem a necessidade de tirar qualquer avião do solo.
Essa pesquisa é também de interesse pessoal para a engenheira. “Tenho pavor de voar: costumo dizer que decidi estudar turbinas só para ter certeza de que o avião não iria cair”, diz Tamara. Nascida em São Bernardo do Campo, ela fez intercâmbio no Japão e nos Estados Unidos, antes de ingressar na Virginia Tech por meio do programa Ciência sem Fronteiras, do governo federal. “Enfrentei muito machismo até chegar aqui”, revela. “A situação da mulher na área de Engenharia está melhorando, mas ainda é complicada.”
 
Brunno Cerozi, 29 anos, engenharia agronômica
O planeta passa por mudanças climáticas e populacionais, que colocam em xeque o fornecimento de alimentos para a população mundial nas próximas décadas. No século 20, a chamada Revolução Verde salvou milhões de pessoas da fome, graças a técnicas inovadoras de agricultura, como o uso de fertilizantes modernos e defensivos agrícolas para combater pragas. Mas essa expansão acarretou impactos ambientais, como o consumo desenfreado de água, recurso cada vez mais valioso e ameaçado.
Uma nova revolução se faz necessária, capaz de integrar o fornecimento de alimento àsustentabilidade do planeta. É nessa fronteira que trabalha Brunno Cerozi, formado na Escola Superior de Agricultura da USP, a Esalq, e que hoje realiza sua pesquisa na Universidade do Arizona, nos Estados Unidos. O cientista estuda modelos que buscam integrar a produção animal com a agrícola, mais especificamente, sistemas aquapônicos, onde plantas crescem na mesma água em que peixes são criados. Os peixes auxiliam na fertilização dos vegetais, que ajudam na purificação do sistema ao processar todos esses nutrientes. O ciclo, então, se completa com mínimo desperdício.
O modelo tem como foco projetos de pequena e média escala, que já se provam factíveis. “Esse sistema faz muito sentido em áreas do Brasil com problemas de falta de água, como a Região Nordeste, cujas condições são bem parecidas com as do estado e deserto do Arizona”, diz Brunno, que planeja voltar para a USP e dar continuidade ao seu trabalho. “Por que não trabalhar no ‘deserto’ brasileiro e com as famílias que moram por lá?”
 
Carleara Rosa, 33 anos, Gisele Passalacqua, 29 anos e Vanessa Dias, 30 anos
Carleara Rosa construiu sua carreira na biotecnologia aplicada a tratamentos de pacientes oncológicos e em cuidados paliativos. Gisele Passalacqua obteve o título de mestra em Engenharia Civil e Mecânica pela Columbia, em Nova York. Vanessa Dias recebeu treinamento na Áustria após participar de um programa da Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA).
Hoje, trabalha na Universidade da Flórida e estuda um método de controle de pragas que seja mais sustentável, com a introdução de insetos estéreis no ambiente. As três foram bolsistas do programa Ciência sem Fronteiras, do governo federal.
Completa o time Glaucia Ribeiro, formada em Sistemas de Informação de Gestão pela Universidade George Washington e que atua em programas de bolsa de estudos como coordenadora de comunicação. Além de suas pesquisas individuais, o quarteto fantástico é responsável pela BRASCON, uma conferência de dois dias realizada em março deste ano na Universidade de Harvard, com a presença do professor de Física e Astronomia Marcelo Gleiser, do neurocientista Miguel Nicolelis, além de outros convidados. “Quero voltar ao Brasil”, diz Vanessa. “Muitos cientistas brasileiros esperam que alguém fará algo por eles, mas a BRASCON acredita que é preciso sair dessa defensiva.”
 
Carlos Vieira, 58 anos, engenharia para satélites
Em 1979, quando se formou no Instituto Militar de Engenharia do Rio de Janeiro como engenheiro de comunicação, Carlos não tinha ideia de que dedicaria sua vida à elaboração de sistemas para satélites. Naquela época, no entanto, o governo brasileiro também começou a se interessar por aquela tecnologia e criou um programa para desenvolvimento de satélites a partir da Embratel — à época, uma empresa estatal. “Naquele tempo, satélites eram coisa de ficção científica”, diz o engenheiro.
Carlos ingressou na companhia em 1982 e foi capaz de surfar na onda de pesquisa e desenvolvimento. Fez cursos e estágios em alguns dos centros mais inovadores da área no Canadá e nos Estados Unidos. “Foi uma época excepcionalmente boa na minha vida, uma experiência que poucas pessoas podem ter”, diz ele, que, em 1985, acompanhou o lançamento do Brasilsat A1, o primeiro satélite nacional. “Nem os chefes tinham experiência nisso, por isso todos aprendemos juntos.”
Depois dessa experiência, o brasileiro foi convidado a trabalhar na SES, empresa de desenvolvimento de satélites com sede em Luxemburgo, na Europa. No cargo de vice-presidente de sistemas de engenharia, Carlos é responsável por auxiliar no desenvolvimento dos equipamentos da companhia, capazes de cobrir 99% da população mundial, de acordo com dados da SES.
 
Pedro Ivo, 23 anos, biotecnologia
Há algo de podre no reino da indústria pesqueira: até o fim deste ano, 26 milhões de toneladas de restos de peixe serão desperdiçadas — pesquisas indicam que esse número dobrará até 2030 em todo o mundo.
Originário de Belém do Pará, cidade com intensa atividade pesqueira e problemas com a manipulação de resíduos, o jovem Pedro Ivo, atualmente na instituição norte-americana de Virginia Tech, desenvolveu um trabalho que promete transformar lixo emsubstâncias químicas que poderão ser reaproveitadas na cadeia produtiva. O processo desenvolvido utiliza bactérias de digestão anaeróbia, que realizam o processo na ausência de oxigênio, para a quebra de moléculas.
A técnica degrada os restos de alimentos, como as sobras dos peixes, até eles se transformarem em água — utilizada em seguida para o cultivo de algas que manifestam características valiosas, como propriedades antibióticas. “Os projetos integrados têm maior chance de resultar em soluções mais imediatas e, no meu caso, o processo é também mais barato”, destaca o pesquisador.
Por enquanto, o brasileiro testou o projeto em uma escala de até 5 litros, mas pretende ampliar a capacidade para até 500 litros e, no caso de financiamento, até 20 mil litros. Segundo maior produtor de salmão do mundo, com média de 800 mil toneladas anuais pescadas, o Chile é um dos países que se interessaram pela iniciativa.
 
Ricardo Durães, 31 anos, bioinformática
Como um investigador molecular, Ricardo Durães busca na evolução química dos vírus respostas que possam dar à humanidade novas armas no combate contra esses agentes.
No doutorado, ele estudou a evolução molecular de vírus em aves; no pós-doutorado, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, seguiu com a investigação.
Hoje, trabalha com o Influenza, causador da gripe. “São quase 100 mil sequências do vírus, isoladas em todos os continentes, com todas as variantes, H1N1, H1N2 e outras circulantes”, diz Ricardo, que utiliza bancos de dados e computação de alta performance para realizar o trabalho. Depois dessa passagem pelos Estados Unidos, ele voltará ao Brasil neste ano para utilizar as mesmas técnicas e conceitos que aprendeu no exterior, mas dessa vez para a pesquisa do vírus zika. “A biologia do vírus é com-plexa e precisamos entender claramente por que ele tem afinidade por determinados órgãos e células neurais”, afirma.
 
Pedro Pires, 32 anos, nanotecnologia
A batalha contra o câncer não será vencida por um único cientista ou por um medicamento milagroso — a pesquisa demanda o trabalho de uma verdadeira legião de cientistas em múltiplas fronteiras, na busca por tratamentos mais eficientes e por ampliar o conhecimento que temos sobre essa doença, responsável pela morte de mais de 8 milhões de pessoas no mundo anualmente.
Nesse jogo de quebra-cabeças da Medicina, o pesquisador Pedro Pires trabalha para desenvolver medicamentos mais certeiros que, ao contrário dos atuais, atinjam com maior precisão as células tumorais, sem prejudicar tecidos saudáveis do organismo. “O paciente em tratamento sente muito desconforto, cólicas e outros efeitos colaterais porque os remédios atuam também em células normais”, diz o cientista, doutor em Química pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e que atualmente trabalha no MIT com o professor Robert Langer, uma das maiores autoridades do mundo em Engenharia Química. Em seus estudos, os pesquisadores também buscam formas de “silenciar” genes responsáveis pelo transporte das células doentes pela corrente sanguínea, o que desencadeia o processo de metástase, ou espalhamento do câncer por outras partes do corpo.
Tudo isso é realizado com nanotecnologia, em escala molecular. “Nas universidades dos Estados Unidos, não temos financiamento apenas do governo, mas também de empresas privadas, diferente do que acontece no Brasil”, diz Pires.
 
Os cérebros que estão lá fora têm muito a dizer sobre a ciência brasileira
Com essa experiência no exterior, quais diferenças os brasileiros encontram entre as pesquisas realizadas no Brasil e nos laboratórios dos Estados Unidos e da Europa? Além de ter fundado a rede SciBr, Cristina Caldas faz pós-doutorado no MIT com foco em infraestrutura de pesquisa, justamente para entender essas diferenças. Segundo ela, a possibilidade de ampla colaboração entre grupos de áreas distintas é um dos pontos mais importantes. “As pessoas são mais abertas a colaborar e os espaços são multidisciplinares”, diz. “Ao passar um período no exterior, amplia-se o número de conexões com pessoas de diferentes formações. Muitos cientistas sentem falta disso no Brasil.”
SAIBAPedro Pires é um dos que ecoam a opinião de Cristina. “Os institutos no exterior são desenhados de forma que os pesquisadores de áreas diversas complementem seu trabalho”, diz o cientista. “Quando eles dialogam, coisas são desenvolvidas de maneira mais interessante e, então, nascem aplicações incríveis.”
Além disso, outras questões mais básicas surgem como entraves em quase toda a conversa com os cientistas. Entre os problemas mais comuns estão a demora na obtenção de reagentes e insumos importados, necessários para o andamento do trabalho. “Basicamente, minha pesquisa poderia ser feita no Brasil”, diz Pires. “Mas quando compramos reagentes, há um tempo de espera de até seis meses. Como as coisas nessas áreas são muito dinâmicas, ficamos para trás.”
Carlos Vieira, que trabalha com satélites na SES, reclama da falta de políticas mais duradouras e estáveis de incentivos à ciência, enquanto outros pesquisadores indicam gargalos relacionados à burocracia e a processos engessados. O jovem Wilian Cortopassi, de 25 anos, pesquisa câncer na Universidade de Oxford, na Inglaterra, e conta exemplos disso. “Aqui, os reagentes ficam disponíveis em um tipo de máquina de refrigerante, e podemos pegá-los com um cartão pré-pago”, diz. “Uma máquina de análise, que no Brasil exige o intermédio de um técnico por ser muito cara, pode ser utilizada com base em um sistema automático que faz esse intermédio aqui na Inglaterra.”
Com a repatriação desses cérebros e suas lições aprendidas no exterior, quem sabe a próxima geração de cientistas brasileiros também consiga produzir trabalhos com qualidade cada vez maior por aqui.